Oferecer um chá para uma pessoa que parece triste e acabou
de entrar por um acaso em um bar londrino qualquer. Até aí, tudo bem. Ou não.
Principalmente quando o fato desencadeia uma sequência de eventos devastadores
na vida do garçom que deixou a bebida por conta da casa. Mais de 41 mil
e-mails, 350 horas de mensagens de voz, 744 tweets, 46 mensagens no Facebook,
106 páginas de cartas e inúmeros presentes. A história real contada em sete
episódios na minissérie Bebê Rena (Netflix) é um dos títulos mais vistos da
plataforma, no primeiro lugar do top 10 de séries no Brasil.
Escrito e protagonizado pelo comediante escocês Richard
Gadd, com Jessica Gunning e Nava Mau, Bebê Rena estreou no dia 11 de abril. A
minissérie é inspirada na experiência vivida por Richard Gadd, que, além de
protagonista, responde também pela criação, produção e roteiro. Gadd interpreta
o comediante Donny Dunn, que sonha em se tornar famoso. Até lá, mora de favor
com a ex-sogra e trabalha como garçom.
O caos se instala na monotonia rotineira de Dunn, quando
Martha (Gunning) entra em cena. Daí para frente, os dois passam a viver uma
relação mórbida e perturbadora de assédio. Claro que tramas de perseguição,
suspense e drama não são novidades. Mas, então, por que a produção surpreende
tanto?
Quem responde é o professor de roteiro do Centro
Universitário Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), Thiago Costa: “A série
mostra, de forma crua vários tipos de violência. Em Bebê Rena, a realidade está
ali. Ou seja, o fato de ser uma história real indica que toda aquela violência
pode estar mais perto do que imaginamos. É uma das séries mais ousadas dos
últimos anos. Uma produção que toca em feridas profundas da sociedade, como as
situações de perseguição, abuso, além da masculinidade tóxica”.
A minissérie já alcançou 22 milhões de views na semana de 22
a 28 de abril e está na primeira posição do top 10 global da Netflix por três
semanas seguidas. A produção ocupa o topo das 10 mais assistidas em 92 países,
entre eles o Brasil e foi sete vezes mais assistida do que a recém-lançada
Garotos Detetives Mortos, segunda posição do ranking, com 3,1 milhões de
visualizações. Não querendo dar aqui nenhum spoiler, mas o beco do medo, da
frustração e do que cada um é capaz de fazer para ser aceito é (bem) mais
sombrio.
“Além da temática e da abordagem corajosa, especialmente por
tratar de abuso contra uma pessoa do sexo masculino, algo que não costumamos
ver, trata-se justamente da experiência do autor e protagonista, o que sem
dúvida nenhuma é um enorme destaque. Donny é um homem que sofre muito e esse
sofrimento, entre outros motivos, vem do fato dele não se encaixar em nada.
Isso faz com que o espectador o acompanhe, se afeiçoe e sofra junto com ele,
deixando toda aquela violência ainda mais agoniante”, analisa o pesquisador.
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Se por um lado, Martha demonstra de imediato um
comportamento obsessivo, Donny também encontra na sua perseguidora uma espécie
de compensação para o seu medo de rejeição. O espectador espera uma coisa, mas
se depara com uma virada na história.
Medo
É inevitável se questionar por que o garçom não denunciou a
stalker. Afinal, Martha não era uma sonhadora em busca de um príncipe, assim
como o comediante também não era apenas perturbado por suas fragilidades. A
questão aqui é sobre o que as pessoas são capazes para se sentirem pertencentes
na sociedade?
Para a psiquiatra e professora do Indomed Alagoinhas, Simone
Paes, a série traz uma diversidade de temas intensos e mobilizadores desde o
início. O grande vilão, no entanto, é o medo: seja da solidão, da exposição das
fragilidades ou da vulnerabilidade “As pessoas são capazes de se submeter a
diversas situações humilhantes e destruidoras para não serrem rejeitados. O
medo da solidão aprisiona em relacionamentos abusivos de toda ordem. Quando a
pessoa não se ama o suficiente só sobrevive emocionalmente a partir do amor de
um outro. Entre a ausência de afeto e o afeto negativo, ela se transforma em
alguém que se agride e pode agredir”, pondera Paes.
A psicóloga, especialista em Terapia
Cognitivo-Comportamental e professora de psicologia da UniRuy Wyden, Bárbara
Guimarães, concorda. Donny despreza, mas sente pena de Martha. Assim, a
perseguição vai ganhando outros contornos:
O stalker tem dificuldade de lidar com controle de impulsos,
de interpretar a si mesmo e outras pessoas, vive uma oscilação entre
afetividade e sensação exagerada de abandono, além de apresentar um padrão de
mentiras repetitivas, como explica a professora do curso de Psicologia da
Universidade Salvador (Unifacs), Fernanda Machado. Ela chama atenção para a
baixa rede de apoio nessas situações: “O trauma afeta autoestima, apresenta
ambiguidade de sentimentos e dificuldade em elaborar a experiência traumática e,
através de aspectos inconscientes, pode projetar a ‘saída’ em objetos externos.
É preciso olhar mais para as pessoas ao nosso redor e prestar atenção nelas”.